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I - ORIGEM DA CULTURA OCIDENTAL

3. AGRICULTURA E REVOLUÇÃO SIMBÓLICA

JACQUES CAUVIN

(Mário Rosa)

Jacques Cauvin nasceu em 1930 e morreu em 2001. Foi um arqueólogo que se especializou na pré-história do Oriente Próximo. É de sublinhar que toda a vida desenvolveu trabalhos de campo.

 

O seu livro mais importante, Naissance des divinités, naissance de l’agriculture: La révolution des symboles au Néolithique, foi publicado em 1994 e teve acrescentos e correcções na segunda edição de 1997. Existe uma tradução portuguesa desta segunda edição pelo Instituto Piaget.

 

Esta obra foi, talvez, o trabalho científico que mais contribuiu para o fim do materialismo histórico no âmbito da arqueologia pré-histórica. Até ali, as grandes evoluções culturais eram explicadas pelos «factos brutais», para usar uma expressão de Marx, das estruturas económicas, também designadas de infra-estruturas, que ficavam soterradas pelas superestruturas que se sobrepunham a elas. Apenas as infra-estruturas são necessárias e, por isso, determinam sempre as superestruturas. Neste sentido, o trabalho de um investigador limitava-se a “escavar” qualquer manifestação de cultura até encontrar a infra-estrutura que a condicionou.

 

Infelizmente, ainda hoje pensamos assim. Se nos perguntarem por que razão o homem se tornou sedentário, sabemos referir, intuitivamente, que deve ter sido pelo aumento de população, que tornava mais difíceis as deslocações nómadas. Daremos também a mesma resposta se nos perguntarem o que levou à invenção da agricultura. O aumento de população, talvez também a escassez de caça, fez com que o homem procurasse uma solução, a agricultura. Por sua vez a agricultura também exigia a sedentarização. Ou seja, para nós, pelo menos neste domínio de questões, também os factores económicos são os “factos brutais”, os factos incontornáveis, que determinaram a história da nossa cultura.

 

Noutros níveis de questionamento, é certo, oferecemos resistência intelectual e será fácil acusar esta tese de «simplismo». Acrescentaremos de imediato, por exemplo, que é preciso discernir bem entre razões necessárias e razões suficientes. Mas o que aqui quero sublinhar é que na origem mais ínfima da nossa cultura aceitamos sem resistências a conclusão de Marx e Engels no livro Ideologia Alemã: o materialismo histórico «não explica a prática segundo a ideia. Explica a formação das ideias segundo a prática material.» Gordon Childe (1892-1957), o homem que situou no Próximo Oriente o «alvor da nossa civilização», o autor da designação «Revolução Neolítica», é um dos expoentes máximos desta interpretação da cultura pré-histórica.

 

É neste contexto que devemos ler a Conclusão do livro de Jacques Cauvin, no subcapítulo “Pré-história e fim do Materialismo”: «Devido à evolução da epistemologia científica e ao caminho percorrido pela disciplina pré-histórica, é curioso constatar que são os “factos brutais” da estratigrafia que contribuem para, nesse domínio, tornar a posição materialista insustentável, invertendo a ordem cronológica dos factores numa fase da história humana que se conhece cada vez melhor».

 

Quais são esses novos «factos brutais»? A sedentarização aconteceu antes da invenção da agricultura (Capítulo 2: As primeiras Aldeias pré-agrícolas: o Natufense). As alterações climáticas que se podem registar favoreceram tanto uma economia de caça-recolecção como a da invenção da agricultura e de forma alguma esta correspondeu a uma resposta perante situações de penúria (Capítulo 1: Meio natural e culturas humanas nas vésperas do Neolítico). Além disso, não existe nem uma expansão demográfica nem «a contradição social que se provoca por um crescimento demográfico» (Capítulo 6: Agricultura, Demografia, Sociedade: um Balanço). Por fim, tanto a revolução neolítica como a sua expansão são fenómenos tão duradouros, que se prolongam por milénios, que exigem causas muito estáveis (Conclusão, Preeminência do simbólico).

 

O que temos então de diferente? O único «facto brutal» que resta é o evento da Revolução dos Símbolos (Capítulo 3). As primeiras divindades a serem representadas são femininas, grávidas, juntamente com o nascimento da chamada “Religião do Touro”. E esta revolução simbólica pressupõe uma modificação da atitude mental (Capítulo 7: A Revolução Neolítica: uma mutação mental) que possibilitou a invenção da agricultura: a mãe grávida da agricultura, a Mãe-Terra. Surgiu um novo modo de o homem interpretar a realidade circundante e a sua própria inserção e intervenção nela. Concluindo: a agricultura é um evento intrinsecamente cultural.

 

Para chegar aqui de muito serviu, como o autor reconhece, as investigações de Georges Dumézil. Foi ele que «demonstrou que as grandes divisões e funções que regiam as sociedades indo-europeias eram reflexo de estruturas míticas mais profundas, susceptíveis de orientar e dinamizar domínios bastante diversos da vida social e cultural.» Portanto, com este estudo de Jacques Cauvin alargou-se a função dinâmica das estruturas simbólicas.

 

Neste ponto, acrescento apenas uma crítica. Enquanto a expansão da Revolução Neolítica, assim como a passagem da arquitectura circular para a rectangular, está bem fundamentada nas estruturas simbólicas masculinas (a Religião do Touro, a «virilização» dinâmica da cultura), na questão agrícola propriamente dita falta um aprofundamento dos elos simbólicos femininos, para o qual a obra de Mircea Eliade ou, mais especificamente, os trabalhos de Marija Gimbutas - sem entrar em algumas deduções muito questionáveis desta autora - poderiam representar um interessante complemento. (O estudo que a autora realizou para o Tratado de Antropologia do Sagrado, III, A religião da Deusa na Europa Mediterrânica, é mais sóbrio, mais rigoroso).

 

Por fim, é de ressaltar que o livro está cheio de minuciosos dados arqueológicos, bem explicados, bem datados e encadeados. Aprende-se muito com a sua leitura.

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