V - ORIGEM DA CULTURA OCIDENTAL: LETRAS
2. AMOR ÀS LETRAS E O DESEJO DE DEUS
JEAN LECLERCQ
(Mário Rosa)
Devemos ainda insistir na última questão da recensão anterior: a que se deve a invenção da minúscula, do espaçamento de palavras, deste «facto brutal» da nossa cultura que originou a leitura em silêncio, a leitura individual. Existe um termo técnico medieval que diz tudo: sacra pagina!
Apenas uma página sacra, uma página das páginas, poderia ter a força de sobreviver aos anos terríveis das invasões bárbaras. Somente uma página sacra poderia desencadear a beleza das miniaturas, o cuidado e esmero dos copistas, a invenção de tipos de letra como a Beneventana, a invenção do espaçamento de palavras. Em relação a este último aspecto, não nos podemos esquecer que a sacra página era uma página para ser interiorizada.
Mas a sacra página é mais do que dissemos. Ela é a origem do método escolástico. Martim Grabmann, na sua grande obra História do Método Escolástico (1909/1911), acertou na ideia de que a palavra “escolástica” se aplicava não a uma doutrina mas a um método. O que continuou a ser polémico foi a origem desse método. Como nos refere Jean Leclercq, hoje em dia começa a ser consensual que o método escolástico surgiu dos procedimentos escolares aplicados à página sacra, especialmente pela questio.
Mesmo assim, temos de dizer que a sacra página ainda é mais. E é esta a originalidade da obra de Jean Leclercq, Iniciation aux auteurs monastiques du moyen Âge. L’amour des lettres et le désir de Dieu (1963). A sacra página não só originou a escolástica mas também a chamada “cultura monástica”. Aqui «a palavra-chave não é já quaeritur mas desideratur; não é já sciendum mas experiendum.»
Na origem do conhecimento está o espanto. Mas o espanto é ambivalente: ele é tanto admirativo como inquiritivo. Colocando o acento num ou noutro, teremos dois tipos de conhecimento: um mais filosófico e científico, outro mais «desinteressado», mais contemplativo e por isso mais abrangente. Não é por acaso que um se desenvolveu nas escolas e outro nos mosteiros. Também não é por acaso que este último é mais existencial. Para definir este tipo de conhecimento talvez a palavra «sabedoria» seja a mais adequada, tanto por ser mais abrangente como por reclamar um “sabor” a ser provado na existência.
Qual é, a nosso entender, o grande problema desta via? É pensar que aqui se apela sobretudo ao sentimento. Daremos apenas um exemplo de como não é assim. Uma das obras mais importantes para se entender o que é o amor ocidental é o Comentário ao Cântico dos Cânticos de Guilherme de Saint-Thierry. É aqui que se encontra tematicamente considerada a intuição de São Gregório Magno: Amor ipse notitia est, o próprio amor é conhecimento. Veja-se sobretudo o Primeiro Canto, pontos 54 e 71. Sem dúvida que o amor comporta um sentimento. Mas com igual insistência é preciso acrescentar que ele implica um acto de vontade e, o que nos é menos familiar, um tipo próprio de conhecimento.
Não se dá por acaso esta descoberta. Para se dar a ver assim é preciso partir de uma metodologia mais abrangente e que não fique presa a distinções e classificações estanques.
Como se formou esta cultura monástica? Tanto a primeira parte do livro como a segunda são uma resposta a essa pergunta. A terceira parte é sobre os frutos dessa cultura. Um dos frutos que desapareceu nos nossos dias diz respeito à teologia. Neste tipo de conhecimento, a teologia não pode florescer sem a oração. «Aquele que ensina é, sobretudo, Deus; portanto, é a Ele que é preciso orar. Nesta perspectiva, não há teologia sem oração, do mesmo modo que não há teologia sem vida moral e ascese.»
A tudo isto levou a página sacra. Sobretudo a uma leitura silenciosa, contemplativa. Pois «a perfeição da sabedoria exige o retiro solitário ou também um coração solitário no meio da multidão» (Guilherme de Saint-Thierry, Cântico dos Cânticos, I Canto, 25.).
Jean Leclercq (1911/1993), como não poderia deixar de ser, foi um monge Beneditino.