Marshall McLuhan
Recensão
(Pedro Gonçalves Rodrigues)
Marshall McLuhan (1911-1980), o pai dos Media Studies, chegou a ser uma pop-star nos anos 60 e 70. Apareceu num filme de Woody Allen, foi capa de jornais e revistas, foi convidado a falar na televisão e a dar formação a executivos da IBM.
Muitos conhecem o seu aforismo The Medium is the Message, mas poucos saberão que era um católico de terço e Missa diários, convicto como os convertidos frequentemente são. Chegara à sua conversão pela leitura de Chesterton durante os seus estudos de letras em Cambridge. Pode, então, ser interessante abordar o seu trabalho desde uma perspectiva cristã.
Ler McLuhan é desconcertante – estamos diante de alguém que pensa diferente, e cuja ideia ao escrever nem sempre é fazer-se entender. Por vezes quer apenas abrir espaços, fornecer probes, sondas, que ajudem o leitor a deixar para trás esquemas mentais que não se apercebe de ter. Aos muitos que o criticaram por não ser suficientemente académico, ou por às vezes soar críptico e vago, valha como exemplo a resposta que deu um dia numa conferência: “Não gosta destas ideias? Tenho outras!”.
De facto, lemos McLuhan como se lê um profeta: não para lhe pedir que justifique ou explique tudo o que diz, mas sim ver o que não estávamos a ver, para revisitar a história da humanidade e descortinar nela sentidos e forças até então invisíveis. E, claro, espreitar o futuro com olhos novos: ouvir falar de uma “aldeia global” antes de haver Internet, e interrogar-se sobre o que quereria dizer quando previa que isso levaria a uma “tribalização”, muito antes de haver Twitter, ou pensar se o modo como ele relacionava isso com a quebra das identidades pessoais sofrida pelos discarnate men da vida online é o que estamos a ver acontecer com as actuais identity politics… é um pensador verdadeiramente seminal: pensa-se a partir dele. Tem daqueles parágrafos que obrigam a pousar o livro para tentar aguentar o embate.
Tudo vai dar àquele the medium is the message: muitos estudam o binómio forma/conteúdo, mas talvez ninguém como ele tenha levado esse estudo às últimas consequências, e percebido o seu efeito no mundo, quando algum medium se estende pelo mundo fora e se torna incontornável.
No seu amplíssimo conceito de media inclui não só os meios de comunicação, mas qualquer artefacto ou instrumento humano: roupa, estradas, óculos. Também os imateriais: jogos, leis, e o instrumento primordial do pensamento: a palavra.
Os seus media são “extensões do homem”. Não estão só fora, a seguir ao homem, pegados pela mão humana. Estão mais dentro, a moldar o próprio homem, a configurar os seus sentidos e o seu alcance. E, como para quem tem um martelo tudo é um prego (cfr. A. Maslow), viu que o mais importante é o modo como os media moldam o pensamento, e depois a sociedade e a história. No individuo que quer comunicar ou usar algo, o conteúdo, a ideia, dita a forma. Mas na sociedade vem a ser a forma, as formas dominantes, que ditam, muito mais do que nos apercebemos, os conteúdos.
Um dia, na televisão, fizeram-lhe da audiência uma pergunta certeira:
— If the medium is the message, and it doesn’t matter what we say on TV, why are we all here tonight, and why am I asking this question?
—I didn’t say it didn’t matter what you ask on TV, I said that the effect of TV, the message of TV is quite independent of the programme. There is a huge technology involved in TV which surrounds you physically, and the effect of that huge service environment on you personally is vast; the effect of the programme is incidental.
Era verdade? Tanto faz, a frase passou. Ficou o efeito avassalador da TV nas sociedades, nas famílias, na política, na religião…
Com estas transições de perspectiva, das ferramentas enquanto algo que me traz uma utilidade, para algo que se vai tornando parte de mim, para algo que configura a minha percepção, para algo que condiciona meu modo de pensar, até ao seu vasto efeito social, McLuhan vai-nos aproximando, página após página, um espelho revelador sobre nós próprios, até acabarmos convencidos que “as sociedades sempre foram mais moldadas pela natureza dos media pelos quais os homens comunicam do que pelo conteúdo da comunicação”.
Um exemplo eloquente, seguindo a sua análise, é o de considerar uma das principais tecnologias na história da humanidade: a palavra escrita, que independentizou as ideias das pessoas que as proferem. Essa tecnologia teve um segundo grande momento, muitos séculos mais tarde, com a chegada da imprensa, que democratizou o acesso à palavra escrita. Qual foi o primeiro livro impresso por Gutenberg? A Bíblia. Do ponto de vista de conteúdo, na perspectiva cristã, está perfeito. Mas a Bíblia levada para casa, em vez de lida em comunidade, o leigo que ultrapassa o clero em conhecimento da escritura, a Palavra de Deus possuída em vez de continuamente recebida numa Tradição, a diversidade de opiniões teológicas que isso gerou, tudo isso fomentou a ideia de que o Espírito Santo ilumina cada fiel, e de que não é necessária hierarquia nem Tradição – e vem a chamada “reforma” protestante.
Ou a sua explicação da introdução do microfone na Missa ser a causa do abandono do Latim, e da rotação do celebrante em direcção ao povo, e dos padres que se tornam o foco da celebração…
Na realidade, estas observações sobre a vida da Igreja podem ser úteis, mas não são a principal razão para dar atenção a este autor. É toda a nossa vida que está em causa, e o actual momento da história só agudizou a necessidade das suas análises: o mundo sempre mudou, mas change is changing, agora vai mais rápido, mais tecnológico do que nunca, e todos trazemos na mão a ferramenta infinita que se vai tornando parte de nós – o smartphone com ligação à Internet. O mundo feito de fragmento, de like, de multitasking, de uma inteligência muito artificial, de polarização, de distância, distracção, mediação…
O que McLuhan de algum modo iniciou, é o que nós no século XXI temos de continuar. O tsunami da tecnologia já está aí, e a reflexão e o entendimento sobre a tecnologia são como uma bóia que nos permitirá sobreviver – ainda que inevitavelmente sejamos arrastados, como toda a gente.
Os cristãos são no mundo os defensores da verdade, e afinal para a verdade não basta acertar os conteúdos. A mensagem que Cristo anuncia é, afinal… o mensageiro. Jesus é o meio perfeito de revelar Deus, não só no conteúdo do que diz.
“Disseram-Lhe então eles: «Quem és Tu?». Jesus respondeu-lhes: «desde o princípio sou mesmo aquilo que vos estou a dizer.” (Jo 8,25, no original τὴν ἀρχὴν ὅτι καὶ λαλῶ ὑμῖν).