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IV - ORIGEM DA CULTURA OCIDENTAL: DUAS CIDADES

5. CRISTIANISMO E CEPTICISMO

MICHEL DE MONTAIGNE

(Mário Rosa)

Os Ensaios de Michel de Montaigne (1533-1592) são um livro de companhia. O título corresponde ao conteúdo: são ensaios, conversas que mantemos com um amigo culto, sem qualquer pretensão; opiniões que enunciamos com a consciência que devem ser reformuladas ou até abandonadas. São exercícios. Daí o seu tom ameno, familiar, quotidiano. Daí também a escolha dos temas: o que vem à conversa, o que vem a propósito. Contudo, não são conversas frívolas. Qualquer que seja o tema, ele é conduzido a algo que toca a vida, o comum destino dos homens. E, independente da conclusão, paira sempre a certeza de que as nossas opiniões nunca passarão disso. Daí essa sensação grave mas habitual, como que de mais um dia que acabou de vez, quando passamos para outro ensaio.

Os Ensaios são uma pedra no sapato do Cristianismo. Ou melhor, Michel de Montaigne é uma pedra no sapato do Cristianismo. Refiro-me naturalmente à sua defesa acérrima do cepticismo. E é uma pedra no sapato exactamente porque o seu cepticismo não pode ser inteiramente rejeitado.

Destaco, em primeiro lugar, a observação fulminante que Antoine Compagnon faz no prólogo à edição de 2007 e que corresponde literalmente à posição de Montaigne. «Tudo se move neste mundo, nenhum conhecimento é certo, mas isto é justamente uma razão mais para mantermos a palavra, para defender uma ética da justiça, da honra e da responsabilidade». É oportuno contextualizar esta afirmação no âmbito da apologética cristã. Uma das críticas que muitos pensadores cristãos farão ao cepticismo é que ele é apenas uma forma velada de dar azo às más inclinações, às depravações morais: “tudo é incerto, logo opto pelo meu egoísmo”. Ora, esta crítica, simplesmente, não funciona para o caso de Montaigne.

Em segundo lugar, o cepticismo é para Montaigne a mais forte razão para aderir ao dogma católico. Todo o capítulo XXV do Livro I é de uma extraordinária clarividência: «É uma perigosa e grave ousadia, para não dizer absurda ligeireza, desprezar aquilo que não entendemos». E esta tese é defendida exactamente para mostrar que nada prejudica mais a consciência do que as “concessões” que os católicos fazem da sua fé. A pergunta que lança neste contexto é mordaz: «Será que já esquecemos quantas contradições percebemos no nosso próprio julgamento, quantas coisas que ontem eram para nós artigos de fé e hoje as consideramos fábulas?» Portanto, a conclusão, surpreendentemente, é esta: devemos aceitar as verdades de fé ou rejeitá-las em bloco.

Este cepticismo, diga-se de passagem, é muito salutar na própria vida espiritual do cristão. É lamentável, e mais lastimável por vir tantas vezes de pessoas santas, a pretensão que se tem de conhecer a “Vontade de Deus”. Assistimos a isso tanto na direcção espiritual – “o que Deus quer de ti é…” – como nas considerações sobre os acontecimentos do mundo – “esta pandemia é um castigo de Deus”; ou, “esta pandemia não é um castigo de Deus”… «A razão ensinou-me que condenar uma coisa tão taxativamente como falsa e impossível é arrogar-se a superioridade de ter na cabeça os termos e limites da vontade de Deus»!

Em terceiro lugar, este cepticismo é muitíssimo prudente perante a instabilidade do pensamento. Não me refiro só à triste e trágica situação de tantos cristãos que cederam a ideologias, teorias filosóficas e científicas, que passados 20, 40, 100 anos se vieram a provar não só erróneas como até ridículas. Refiro-me a algo ainda mais sério para o cristianismo. Repare-se nesta passagem do “proscrito” capítulo dos Ensaios: «E, nos nossos tempos, Copérnico fundamentou tão bem esta doutrina [heliocentrismo], que se serve dela com grande precisão para todas as consequências astronómicas. Que conclusão tiraremos daí senão que não nos deve importar qual das duas seja a verdadeira?» Repare-se. Montaigne não está a dizer que a teoria de Copérnico não seja a verdadeira. Também não se refere apenas, como dirá logo de seguida, que poderá aparecer uma terceira. Está a dizer que nenhuma das duas deve interessar em relação à posição cristã. Ou seja, muitas vezes a cristandade agarrou-se a razões para fundamentar a sua fé que estão longe de lhe pertencer essencialmente.

A primeira grande crítica que se costuma fazer a esta posição, e que já cruzou a mente do leitor, é a comumente feita ao cepticismo: a de ser contraditória com a razão. Mas Montaigne sabe que o cepticismo radical é contraditório e cita Lucrécio: «Quem pense que nada sabemos, ignora também se se pode saber o suficiente para afirmar que nada sabemos». A segunda crítica que nos ocorre é a de fideísmo. Contudo, por vezes, Montaigne dificulta a acusação em teses claramente complexas: «É tanto mais conforme à razão quanto mais contrária à razão humana»…

Pela sua falta de sistematização, sobretudo de ausência de diferenciação de planos de consideração, nunca será fácil precisar qual a posição de Montaigne. Se calhar é mesmo essa a sua posição. Por ventura a sua tese só será passível de ser enunciada em ensaio. Não sei. O que está fora de dúvidas é que a sua filosofia está por estudar e tem sido muito mal avaliada. Não é, definitivamente, o cepticismo barato dos nossos dias.

Mesmo nesta incerteza, gostaria de salientar a sua crítica à razão quando se refere às suas condições de exercício. A descrição que apresenta da influência da vontade, das paixões, no posicionamento das opiniões, é de uma clareza notável. Outra dimensão muito bem explorada são os sonhos e desvarios da razão. É certo que uma ou outra espiritualidade, em certas fases da história, promoveram, em nome de uma suposta humildade e obediência, um rebaixamento e atrofiamento da razão inqualificáveis. Veja-se, a título de exemplo, o que fizeram com a pobre Bernadette Soubirous. Mas, de igual modo, deve ser denunciado tudo o que já se fez em nome da deusa razão e de uma certa emancipação intelectual. Nestes temas, Montaigne consegue fazer-nos rir até às lágrimas. Numa única frase: o Livro da Sabedoria é inspirado, mas o Livro de Coeleth também.

          

Outra vertente dos Ensaios que está por estudar é a sua profunda conceptualização da Fortuna, contrariamente ao que o Renascimento nos habituara. A constante contraposição de exemplos que coloca em cada tema abre e define o âmbito de algo que provém das nossas acções mas que é imprevisível nas suas consequências e que configura o acontecer histórico. Aqui não se trata apenas de cepticismo. Trata-se de indicar um âmbito onde algo maior acontece: espírito do tempo? Providência?               

A dúvida mordaz de Montaigne também pode ter outro interesse. O de não nos aferrarmos a sínteses culturais que a cristandade já fez - daí ter colocado esta recensão em último lugar. É preciso ter a ousadia de tentar novos ensaios, sem nunca, como fez Montaigne, tocar nas verdades de fé.

Uma última nota. Num tempo onde se tem opinião sobre tudo e sobre todos, que bem faria saber calar e ir lendo com calma os Ensaios, enquanto se passeia em imaginação pela biblioteca de Montaigne, e terminar a sorrir ou a franzir o sobrolho quando numa das suas vigas encontramos uma inscrição em latim ou grego:

«Os homens atormentam-se pelas suas opiniões sobre as coisas,

não pelas próprias coisas.»

«Não compreendo.»

«Não saibas mais do que o necessário, para não paralisares».

«Aquilo que mais te orgulha é o que te vai fazer cair».

«Deus concedeu ao homem o afã de conhecer para sua exasperação.»

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