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IV - ORIGEM DA CULTURA OCIDENTAL: LETRAS

4. THEORIA GREGA. O SAGRADO

JOSEF PIEPER

(Mário Rosa)

Josef Pieper nasceu em 1904, na Alemanha, e morreu em 1997. A partir de 1950 foi professor na Faculdade de Filosofia de Münster. (Sobre este autor, veja-se a recensão no separador VII – Cultura Cristã Ocidental Contemporânea, Grandes Filósofos do séc. XX, Josef Pieper).

 

Para o tema que nos ocupa, destaco dois livros seus.

 

Existe uma grande discussão sobre a influência que o cristianismo recebeu da cultura grega. No livro Introdução ao Cristianismo, Joseph Ratzinger trata amplamente este tema. O que ali não é abordado, e é importante fazê-lo, é que hoje em dia quando falamos do conhecimento grego nem nos apercebemos que já o interpretamos a partir de categorias modernas, o que torna o problema insolúvel. 

 

Musse und Kult (edição inglesa: Leisure, the Basis of Culture, com uma introdução de T.S. Eliot; edição espanhola Ocio e Culto). Este livro constitui uma defesa do ócio frente à «tirania do mundo do trabalho». Mostra como até o intelectual passou de ser um contemplativo a um “trabalhador”. E a génese desta transmutação é clara: «A Idade Média distingue a razão como ratio da razão como intellectus. A ratio é a faculdade do pensar discursivo, do procurar e investigar, do abstrair, do precisar e concluir. O intellectus, pelo contrário, é o nome da razão enquanto faculdade do simplex intuitus, da “simples visão”, à qual se oferece o verdadeiro como ao olho a paisagem». Ora, se a objectualidade do objecto do intellectus, na filosofia moderna, fica confinada a algo a priori, portanto, a algo meramente formal, então o exercício da razão é tão só actividade, “trabalho”. Não há espaço para a contemplação mas apenas para a observação, passando esta a ser, como refere Jünger, um “acto agressivo”.

 

Outra consequência imediata, mas desta vez para o cristianismo, é que a contemplação das verdades da fé passa a ser uma “catalogação de ideias, de verdades abstractas”, um “museu” intelectual. Acabou-se então o poder salvífico da contemplação da verdade.

 

O pensamento antigo e medieval coincidem no essencial: «é no esforço activo do pensar discursivo onde se encontra o momento propriamente humano do conhecimento; o que distingue o homem é a ratio; o intellectus vai mais além do que corresponde propriamente ao homem.» Por isso os antigos e medievais reconheciam «que é inerente ao homem esse algo “supra-humano”». Assim, a vida contemplativa era para São Tomas non proprie humana sed suprahumana. E para Aristóteles o «homem não pode viver enquanto homem senão unicamente enquanto algo divino mora nele» (Ética a Nicómaco).

 

É neste contexto que se percebe que a theoria grega era uma experiência do sagrado e, neste sentido, muito compatível com o cristianismo. (Para aprofundar a noção de theoria grega veja-se Antike Religion de Karol Kerényi). Mas a questão fundamental persiste. O que é o sagrado?

 

Sakralität und Entsakralisierung (edição inglesa: In Search of the Sacred; edição espanhola: Sacralidad y Desacralización. A tese central deste pequeno livro escrito em 1969, partindo de uma análise filosófica, tem sido recentemente confirmada pelos grandes investigadores da história das religiões, nomeadamente Julien Ries.

 

Um dos seus capítulos tem um título que acerta de um só golpe no cerne do problema: «Deus não é sagrado». Com efeito, mesmo as nossas línguas ocidentais atestam que chamamos sagrado a tudo o que diz respeito a Deus, a tudo o que de algum modo está ordenado ou pode ser ordenado a Ele. Mas ao próprio Deus não o designamos por sagrado. Deus não é sagrado, Deus é santo. Sagrado é uma categoria de mediação. Um terceiro termo entre o homem e Deus.

 

Josef Pieper consegue topar com esta “evidência linguística” exactamente porque não partiu de preconceitos estabelecidos por muitos sectores das ciências religiosas. Outra “evidência” que o autor consegue imediatamente notar é que o termo “profano” não tem em si nada de negativo. É simplesmente o que está diante do sagrado (pro-fanum). Outra coisa é quando há usurpação de domínios. Aí já há um sentido pejorativo: “profanação”, por exemplo. Ou seja, definir essencialmente o sagrado por contraposição ao profano é um caminho errado. É preciso abandonar as fórmulas habituais que contrapõem o sagrado e o profano como sendo «dois mundos radicalmente heterogéneos» (Durkheim, Lalande, Vocabulaire) como estando separados por um «abismo» (M. Eliade, O Sagrado e o Profano). Sagrado é tudo o que está orientado a Deus, tudo o que é ou Lhe possa ser con-sagrado. E esta ordenação conhece graus, intensidades. Mais, um mesmo objecto pode ter um sentido profano e sacro. Podemos dizer que “o homem é sagrado”, no sentido que possui uma dimensão que diz respeito directamente a Deus.

 

Tudo isto se torna mais claro, é certo, no cristianismo. A análise da raiz qdš, por exemplo, tal como o mostraram Costecalde e Cazelles, não alude à noção de “separação” mas sim à de consagração (Sacré et Sainteté, Suplement au Dictionaire de la Bible). É de notar também que a palavra hagios sofreu já uma alteração de significado no pensamento religioso helénico e precisamente pelo seu contacto com as religiões semíticas e egípcias: passou a ser o epíteto da transcendência divina.

 

Uma última nota sobre a magia. Geralmente também se associa o sagrado à magia. Mas se atendermos à definição de magia que dá Pieper ficamos surpreendidos com as consequências. «Magia é a tentativa de ter à disposição, mediante um determinado facto, poderes sobre-humanos e coloca-los ao serviço dos fins humanos». Ora, neste sentido, a magia é uma profanação da dimensão sacra. O sagrado remete sempre e em primeiro lugar a Deus e aos seus fins.

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