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IV - ORIGEM DA CULTURA OCIDENTAL: ROMA

5. CULTO E CULTURA

UMA TENTATIVA DE EXPLICAÇÃO

Mário Rosa

1. Resumo de pontos anteriores. Vimos que para os romanos o acontecer histórico existe para significare, para revelar uma actuação divina ou anunciar uma futura intervenção. Também vimos que o culto era entendido como representação da divindade no tempo, na sua acção. Os actos de culto propiciam esse actuar divino: “Hoc age” [Fá-lo!]. Além disso, vimos a importância que a traditio desempenha nos romanos, essa peculiar acção que consiste sobretudo em servir de meio, em entregar. Agora perguntamos: o que é o facere romano? Porque chamamos cultura à cultura?

 

2. Cultura vem de colere, “acto de plantar”. O que acontece aí? O fazer agrícola nada mais faz do que dar condições para que as potencialidades da Natureza, da planta, tenham lugar. Ou seja, este fazer tem a particularidade de não adulterar mas de elevar à plenitude, de pura e simplesmente manifestar o que estava inculto. Daí ser um fazer esmerado, cuidadoso. Esta metáfora passou rapidamente para o ofício religioso (officium, contracção de opifex: opus – obra; e fex, sufixo ligado ao verbo facere). Portanto, fazendo a analogia com o pensamento heideggeriano sobre a obra de arte, podemos dizer: no officium agrícola trata-se de um fazer-obra que traz à luz, que manifesta, a Natureza e a natureza dos deuses. Mas aqui, no culto, também com uma conotação de realidade mas de realidade última – é o sacro, o sancire: conferir validez e realidade a algo, fazer que algo exista.

 

3. Ao que parece, os romanos, não estenderam esta metáfora do fazer agrícola mais do que ao cultus religioso. É certo que Cícero se referiu à filosofia como cultura da alma (cultus animi - Tusculanae disputationes II, 13). Mas pouco mais encontramos em Roma. Estender, tematicamente, a metáfora do fazer-agrícola ao todo do que entendemos hoje por cultura acontecerá na Idade Média tardia e, principalmente, na Idade Moderna. Mas recordemos um dado: partindo do culto religioso, o acto de cultivo agrícola ficará perdido nas origens. Na sua origem, ele só ficará claro quando se falar de pessoas ou povos “incultos”.

 

4. Os deuses e a cultura dos povos. Os romanos não punham em causa a presença de Deus mas preocupavam-se por torná-la manifesta, por lhe dar peso e segundo a Natureza dos deuses (lembre-se do livro de Cícero De Natura Deorum, da Natureza dos deuses). Também sabiam perfeitamente que nem todas as culturas tiveram a mesma aptidão para o conseguir. É o que podemos ler na obra de Tito Lívio referindo-se aos Etruscos: «O povo mais dedicado que qualquer outro aos ritos religiosos, tanto mais quanto se distinguia na arte de os cultivar [...]. (gens itaque ante omnes alias eo magis dedita religionibus quod excelleret arte colendi eas […]. Ab Urbe Condita, 5. 1. 6). Interrompi a citação propositadamente. Detenhamo-nos no que ficou transcrito: «os Etruscos eram muito religiosos porque se distinguiam na arte de cultivar os ritos! Ou seja, os ritos não eram vistos primariamente como praxis, mas como facere, como officium: pôr em obra a manifestação de Deus, a verdade sacra.

 

5. Sagrado e Sacrum facere. Se agora atendermos à palavra sacrifício somos conduzidos à mesma conclusão. O facere sacrum é um fazer peculiar. Ele apenas deixa que a manifestação de Deus aconteça. O exemplo mais “desconcertante” do significado deste facere sacrum, apesar de ser tomado do mundo indo-europeu, não é romano. Régis Boyer escreve: «Na antiga expressão nórdica “blóta Gud hestum”, “sacrificar um cavalo a Deus” – na qual o verbo blóta corresponde ao nosso “sacrificar” – aquilo que nós consideraríamos o destinatário do sacrifício, isto é, Deus (Gud), não está neste caso em dativo, mas em acusativo, enquanto que a vítima sacrificada, o cavalo, aparece em dativo e não em acusativo (hestum em vez de hest), de tal modo que a tradução literal da expressão seria “sacrificar o deus por /meio de/ um cavalo”. Este giro compreende-se ainda melhor se se substituísse o verbo blóta por um dos seus equivalentes mais expressivos: magna (magna Gud hestum), que implica a ideia de potência, capacidade, megin – ou seja, fazer a Deus mais potente mediante o holocausto de um cavalo». (Trattato di Antropologia del Sacro, Volume I, Cap. II)  

 

Distinga-se, neste exemplo, o que é tradução e o que é acrescento: magna não aparece na frase. Seja como for, fica claro que se trata de fazer Deus mais presente, intensificar a sua presença. Isto é, trata-se de um fazer que consiste em trazer Deus à presença, à manifestação: por isso é sacra.

 

Mas aqui temos de voltar a Roma. Para os romanos, cujo único mito próprio é o mito nacional, a própria história desenrola-se segundo a lei do sacrum-facere. É o que se pode verificar em Virgílio (Tratado de Antropologia do Sagrado, vol. III, Quinta Parte: Roma e o Sagrado, 2. A concepção da história: eleição, culpa, crise, expiação, renovação). Que lei é esta? Para a entender temos de regressar à metáfora original e perceber melhor o que aí acontece. 

Nota. Quem quiser continuar a aprofundar no tema, veja as recensões do separador III (O Sagrado: O Rito Romano) do nosso site Cultura & Liturgia.

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