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IV - ORIGEM DA CULTURA OCIDENTAL: DUAS CIDADES

3. CRISTIANISMO E FILOSOFIA

ÉTIENNE GILSON

(Mário Rosa)

É difícil escolher uma obra de Gilson que melhor resuma a influência do Cristianismo na Filosofia. Escolhemos a primeira onde o autor analisa tematicamente este problema: L’esprit de la philosophie médiévale (1932).

 

O primeiro capítulo está dedicado ao problema da existência ou não de uma filosofia cristã. A questão não é nada fácil, mesmo colocada entre “filósofos cristãos”. Irá depender do que cada “filosofia cristã” entenda por razão. Como é óbvio, tudo se complexifica quando abordamos o problema em filósofos não cristãos. Mais, tudo parece perdido à partida quando se evoca o chavão “uma filosofia cristã é um círculo-quadrado”. Com efeito, em certo sentido, é verdade. Não existe uma filosofia cristã tal como não existe uma matemática cristã.

 

Em que plano a questão não é contraditória? Gilson é muito claro: no plano «das condições de facto do exercício da razão. Não há razão cristã mas pode haver um exercício cristão da razão». Ou seja, pensar é sempre pensar em e por possibilidades. As possibilidades esboçam-se, adumbram-se e desenvolvem-se no tempo. É neste âmbito que Gilson lança a pergunta incisiva: «Porquê recusar à priori que o cristianismo pôde mudar o curso da história da filosofia, abrindo à razão humana, através da fé, perspectivas que aquela ainda não tinha descoberto?»

 

Esta pergunta, contudo, é uma provocação. Ela é um atentado à própria pretensão da filosofia moderna enquanto tal. Aquilo que Gilson pretende que se aceite como um “facto” é, para a filosofia moderna, a sua autodestruição: «É um facto que a razão não basta à razão». Portanto, repare-se que não existe a suposta “neutralidade” de uma das posições na discussão. Ambas estão demasiado implicadas no problema.

 

Mas há outra conclusão importante a que podemos chegar. A filosofia moderna, subtilmente, esconde uma pretensão que nunca chega sequer a discutir. A de que ela representa a filosofia enquanto tal. Diga o que disser, historicamente não é assim. A mitologia, por exemplo, para os filósofos da Antiguidade tinha também uma “logia”, como bem sublinhou Károly Kerényi (cfr. Estudos do Labirinto). Ou seja, deparamo-nos aqui, veladamente, com uma pretensão ainda mais absurda: de que a razão pertence exclusivamente à filosofia. É importante lembrar que outros dois grandes legados da cultura grega foram a educação e a democracia, e nenhuma delas foi criação da filosofia. Hoje, graças a Deus, já falamos de vários tipos de pensar: pensar poético, simbólico, etc. Nada disto, porém, retira a importância decisiva da filosofia para a constituição do Mundo Ocidental. 

 

Posto isto, que possibilidades o Cristianismo abriu historicamente à filosofia? Em primeiro lugar, ofereceu uma possibilidade radical no seu questionamento e impensável para o mundo grego. Leibniz saberá formular a pergunta como ninguém: porquê o ser e não o nada? Para os gregos o seres estavam simplesmente aí, sempre estiveram, e apenas se questionavam sobre o movimento ou transformação. 

 

A partir desta possibilidade, muitas outras questões se ultimam. Por exemplo, o que é o amor? Gilson tem uma passagem admirável sobre este tema: «Quando lemos, nos comentários à Divina Comédia, que o último verso do grande poema não faz mais que traduzir o pensamento de Aristóteles, estamos muito longe da verdade, pois o amor che muove il Sole e l’altre stelle só tem em comum com o primeiro motor imóvel o nome. O Deus de São Tomás e de Dante é um Deus que ama; o de Aristóteles é um Deus que se deixa amar; o amor que move o céu e os astros, em Aristóteles, é o amor do céu e dos astros por Deus, enquanto em São Tomás e Dante é o amor de Deus pelo mundo […]»

 

Obviamente que esta posição implicará uma reformulação no pensamento de Aristóteles. E Gilson demora-se a explicar essa novidade na filosofia de São Tomás. Para quem não está familiarizado com o pensamento aristotélico poderemos colocar a questão de um modo mais acessível. O amor, como lembra Platão, é filho da pobreza. Amar é necessitar de outrem. Logo, Deus não pode amar. Mas a revelação diz outra coisa. Ora, isto obrigou a criar novas possibilidades de compreensão do amor. Se Deus cria por amor e não tem necessidade do mundo, então é porque pode haver um amor absolutamente desinteressando: puro dom. O amor fica então compreendido em duas modalidades: amor por insuficiência, o nosso, e amor por plenitude, o de Deus. Sem dúvida que Platão, como Ovídeo, para dar outro exemplo, conheceu o que era um amor desinteressado. Mas não nesta radicalidade.

 

O que acabamos de ver pode dizer-se em relação a temas como monoteísmo, liberdade, pessoa, etc.. Por muito que nos choque, para dar um exemplo forte, o infinito é um conceito negativo nos gregos. «O infinito – diz Aristóteles – não é aquilo fora do qual não há nada, mas, ao contrário, é aquilo fora do qual sempre há alguma coisa». Que longe estamos do papel que o conceito de infinito jogou na filosofia moderna!

 

Não pretendemos ser exaustivos nesta recensão. Basta o que ficou dito. Acrescento apenas uma crítica. Por muito abrangente que pretenda ser Gilson na sua definição de Espírito da filosofia cristã, nota-se constantemente uma preferência tomista. Por exemplo, demorar-se num Ricardo de São Victor e, a partir dali, mostrar a nova conceptualização de pessoa que o cristianismo exigiu, apesar de ser muito menos precisa conceptualmente, teria sido mais eficaz do que demorar-se tanto na novidade que Boecio vem trazer à noção de pessoa com o seu acrescento de “individua substantia”. Digo isto até pela importância que o vocábulo ex-sistere adquiriu na filosofia contemporânea.

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