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I - ORIGEM DA CULTURA OCIDENTAL

6. A INVENÇÃO DA ESCRITA

HARALD HAARMANN

(Mário Rosa)

Harald Haarmann (1946) é um linguista alemão, autor de mais de 40 livros. Aqui falarei apenas da sua História Universal da Escrita (1991, existe tradução inglesa e espanhola).

 

Na introdução deste livro o autor enumera 12 pontos «assentes» hoje em dia sobre a escrita e que precisam de ser superados. Pela brevidade desta recensão, apenas posso tratar dos primeiros dois pontos, a saber: a) a escrita foi inventada como uma nova tecnologia; b) a escrita desenvolveu-se numa região cultural determinada (mesopotâmia) e a partir dali difundiu-se às grandes culturas da Antiguidade (tese da monogénese da escrita).

 

No capítulo 2, “Escrita, Religião e Civilização”, o autor escreve: «É compreensível que se procure para a primitiva utilização da escrita um fundamento “moderno”: a necessidade de dominar uma massa de informação que cresce sem cessar e, sobretudo, codificar informações com o fim de as voltar a utilizar. […] A realidade histórica é outra, pois as primeiras amostras de textos transmitidos nas línguas de culturas antigas não são nem textos jurídicos, nem crónicas, e em nenhuma das tradições gráficas regionais aparecem inicialmente textos literários. Os motivos para desenvolver e utilizar a escrita não são em nenhuma parte de natureza mundana ou artística.»

 

Vejamos esta tese no segundo ponto em discussão. «Também nos círculos científicos especializados se impõe aos poucos a ideia de que é na Europa que se deve procurar a civilização mais antiga que mereça este nome [ou seja, que inclua a invenção da escrita]. Os seus inícios remontam-se até ao VII milénio a. C., e o seu núcleo encontrava-se no sudeste europeu. Devemos à arqueóloga lituana M. Gimbutas um quadro geral e bastante digno de crédito deste âmbito cultural, que ela chama Old Europe».

 

«Os começos do uso da escrita na Antiga Europa remontam aos finais do VI milénio a. C. Assim fica claro que a escrita paleo-balcânica não pôde ser uma “importação” suméria, além de que os signos desta escrita não têm semelhanças significativas com os símbolos da velha escrita pictórica suméria.»

 

«A definição do que é a escrita só pode referir-se à intenção de escrever enquanto tal, quer dizer, em associar símbolos gráficos com signos linguísticos, mas não quanto à extensão do uso escrito. É evidente que na área da civilização antigo-europeia a escrita é um meio de comunicação entre homens e deuses. O acto de escrever entrava sempre no contexto de cerimónias religiosas como a invocação de uma divindade, a oferenda de objectos votivos para a divindade, rituais de fertilidade, actos sacrificiais, ritos de enterramento e culto dos antepassados. O facto de que as descobertas escritas estejam limitadas aos lugares de culto é um indício de que a escrita antigo-europeia era uma escrita sacra, cuja utilização tinha motivos religiosos.»

 

Neste momento perguntamo-nos que razões haveria para se utilizar a escrita no âmbito religioso. O autor responde apresentando duas razões: tanto a complexidade da escrita com a sua duração/estabilidade (esteve presente desde o final do VI milénio até meados do IV milénio a. C) indicam que ela teve origem e se manteve por uma casta sacerdotal. «Ora cabe supor que eram os próprios sacerdotes que gravavam as inscrições nas oferendas, desta forma o acto de escrever equivaleria a uma intensificação da comunicação entre o crente e uma divindade determinada, comunicação na qual os sacerdotes eram os intermediários. Para o homem simples da Antiga Europa, este uso sagrado da escrita podia estar associado à ideia de que fosse uma condição essencial para que as divindades se inclinassem a aceitar de forma favorável o destino dos homens.»

 

Mais uma vez deparamo-nos com a situação de que são estes novos «factos brutais» que «tornam a posição materialista insustentável, invertendo a ordem cronológica dos factores numa fase da história humana que se conhece cada vez melhor» (Jacques Cauvin).

«Com as invasões da cultura indo-europeia fica interrompida esta escritura sacra e Europa cai por volta do ano 3.500 a.C. Mais de dois mil anos separam os últimos escritos descobertos da cultura de Vinca dos primeiros testemunhos escritos do grego micénico no continente.» E o mais grave, e também o mais sublime, é que «provavelmente as inscrições sacras da Antiga Europa nunca revelem o seu conteúdo ao investigador moderno. A civilização da Old Europe guardará para sempre o seu segredo, já que as inscrições estavam destinadas à divindade.»

 

Seja como for, temos aqui mais uma manifestação de como o sagrado esteve na origem dos principais avanços culturais.

 

A título de curiosidade acrescento mais uma informação. No primeiro capítulo (Homens, Imagens e Símbolos – das múltiplas técnicas para fixar informações) encontramos um dado interessante: «Também causou admiração, por exemplo, as pedras gravadas de Alvão (Portugal), que datam por volta do ano 4000 a. C.. As pedras estão perfuradas e originalmente estavam penduradas em hastes na câmara de uma sepultura megalítica neolítica. A sua relação com o culto dos mortos está assim fora de dúvida, ainda que não seja de forma alguma claro se são símbolos mágicos ou algum tipo de signos parecidos à escrita. Dado que estas pedras estão isoladas do ponto de vista histórico-cultural, apenas resta especular se as pedras do Alvão seriam documentos de uma escrita mediterrânica desaparecida.»              

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