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JORIS-KARL HUYSMANS

Recensão

(Mário Rosa)

Charles-Marie-Georges Huysmans, mais conhecido como Joris-Karl Huysmans, nasceu em Paris em 1848 e morreu em 1907.

 

Não é possível falar deste escritor sem uma referência constante ao prefácio publicado vinte anos depois de ter escrito a sua obra mais conhecida: À Rebours – 1884 (edição portuguesa: Ao Arrepio).

 

Huysmans tinha percebido que o Naturalismo chegara ao fim: «por mais criativos que fôssemos, o romance poderia resumir-se nestas poucas linhas: saber por que razão o cavalheiro Fulano de Tal cometeu ou não cometeu adultério com a senhora Beltrana de tal.» Por isso era preciso «abrir janelas», «escapar de uma atmosfera asfixiante», «sacudir preconceitos», no fundo, «quebrar os limites do romance».

 

Para conseguir este objectivo, Huysmans seguiu dois caminhos. O primeiro, o mais imediato e o que deu mais impacto no momento, foi livrar-se da «intriga tradicional», do «amor», e «fazer incidir o foco de luz sobre uma única personagem, fazer qualquer coisa nova, independentemente do preço a pagar.» Este novo caminho foi devidamente percebido e desenvolvido por Oscar Wilde.

 

No fim do capítulo X de O Retrato de Dorian Gray, aparece a referência ao livro «amarelo», ao «livro venenoso»: «Era um romance sem enredo e só com uma única personagem, tratando-se, na verdade, apenas de um estudo psicológico de um certo jovem parisiense que passava a vida procurando realizar no século XIX as mais variadas paixões e tendências que pertenciam a todos os séculos menos ao seu, deste modo condensando em si mesmo os vários estados por que alguma vez passara o espírito do mundo, deliciando-se, pela sua mera artificialidade, com as renúncias que os homens classificam insensatamente de virtudes, tanto como as naturais rebeldias que os homens sensatos continuam a apodar de pecados.»

 

Certamente que assinalar este caminho presente em À Rebours é importante. Mas ele foi apenas um meio. O que autor pretendia no fundo era superar o «estudo psicológico» em que se encerrava o romance. O seu objectivo era claro: «o tomo que não tem verificabilidade objectiva, o livro que não me ensina nada, não me interessa.» Se procurava «quebrar os limites do romance» era sobretudo para «introduzir nele a arte, a ciência, a história, ou seja, em não mais usar esta forma a não ser como um quadro onde se pudesse inserir um trabalho mais sério».

 

Portanto, À Rebours pode ser visto de dois pontos de vista: como um livro representativo da decadência de um estilo e de uma sociedade – é a perspectiva comum em que é analisado; ou como a abertura de um novo caminho. Perceber a ligação das duas perspectivas é a chave para compreender esta grande obra.

 

Insistamos: o que tem de novo este romance? Cada capítulo de À Rebours é «um concentrado de uma especialidade, o sublimado de uma arte diferente; cada um se condensava numa tenrura de pedras preciosas, de perfumes, de flores, de literatura religiosa e laica, de música profana e de cantochão.» Ou seja, há uma viragem de eixo do sujeito para a realidade. E este caminho foi muito fecundo. Sem esta obra, com efeito, teria sido impossível um romance como Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, O Homem sem Qualidades, de Robert Musil, e A Morte de Virgílio, de Hermann Broch.

 

Contudo, naquela altura, a única forma de se virar para a realidade era «isolar» a personagem, aprofundar ainda mais no seu «estudo psicológico». Daí que naturalmente se impusesse uma encruzilhada. Num único momento, Dorian Gray quase que percebe: «Por vezes, mal se podia distinguir se a leitura versava sobre os êxtases espirituais de um santo medieval ou sobre as mórbidas confissões de um pecador contemporâneo.» O único literato, como Huysmans reconhece, que percebeu com toda a nitidez a encruzilhada e os respectivos caminhos em opção foi Jules Barbey: «Depois de um tal livro, não resta mais nada ao autor senão escolher entre a boca de uma pistola e os pés da cruz».

 

Barbey, porém, viu demasiado longe. Ainda faltariam 8 anos para Huysmans se converter. Até ali a Igreja Católica não lhe dizia nada. Apenas se perguntava «como podia uma religião que me parecia feita para crianças sugerir obras tão maravilhosas». Mas este «apenas», na nossa opinião, foi decisivo. As obras que Huysmans achava tão maravilhosas foram as «janelas» que lhe permitiram sair de si, da sua subjectividade enredada e doentia. Só há dois caminhos, como bem destaca Spaeman, ou a auto-realização ou a auto-transcendência. Dorian Gray seguiu o primeiro caminho: «na verdade, parecia-lhe [a Dorian] que todo o livro encerrava a história da sua própria vida, escrita antes de ele a ter vivido». Huysmans seguiu o segundo caminho. Vejamos um pouco esse caminho.

 

«Todos os romances que escrevi depois de À Rebours [estão] nele embrionários. Os seus capítulos são pontos de partida para os volumes que se lhe seguiram». «Durtal», a personagem principal, que «acabou por resistir às restrições divinas, sobremaneira obstinado a ponto de chafurdar na sua lama carnal», deu origem ao livro Là-Bas» -1891 (edição espanhola: Allá Lejos). «O capítulo sobre a literatura latina da Decadência foi […] aprofundado nos passos sobre liturgia de En Route» -1895 (edição portuguesa: A Caminho). O capítulo sobre pedras preciosas, retomei-o nas páginas de La Cathédrale» - 1898 (edição portuguesa: A Catedral). «Ali infundi vida nova nas pedras mortas de À Rebours» que, aprofundando «no idioma dos símbolos», passaram a ser «uma joalharia do além». E nestas duas obras foi amplamente estudado o cantochão.

 

Talvez agora possamos concluir: por as obras de arte da Igreja estarem dotadas de transcendência, não só para o além mas, previamente, para a realidade, Huysmans conseguiu sair de si e firmar-se na auto-transcendência. Aconteceu assim na literatura o que Husserl conseguiu na filosofia. O seu lema de ir «às coisas mesmas» abriu um caminho para a conversão de vários filósofos, a ponto de Husserl dizer que a Igreja Católica o deveria canonizar.

Uma nota sobre A Catedral. Já não é possível entender a estatuária gótica sem passar pelas análises contidas neste livro. São de uma descrição esquisitamente rigorosa e acertada. O mesmo se pode dizer da pintura flamenga.

 

Concluindo. As três grandes obras de Huysmans não podem ser lidas isoladamente: Ao Arrepio, A Caminho, A Catedral.

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