IV - ORIGEM DA CULTURA OCIDENTAL: DUAS CIDADES
1. JERUSALÉM E ATENAS
MIGUEL MORGADO
(Mário Rosa)
Na cultura portuguesa recente, deve-se a Miguel Morgado a reposição de pensar a grande tradição das duas cidades Jerusalém e Atenas numa perspectiva de futuro (cfr. Atenas e Jerusalém, Linhas Direitas, Cultura e Política à Direita). Isto é importante sobretudo para quem se aferra a uma tradição fechada ou a uma concepção meramente cumulativa da tradição.
Já vimos no IV separador – A Origem da Cultura Ocidental: Roma – que devemos a Rémi Brague a indicação pertinente de uma terceira cidade na constituição da nossa cultura. Este autor mostrou que «somos “judeus” e “gregos” porque em primeiro lugar somos romanos». Roma inventou o processo de “transplante” cultural. Ela não sofreu influência da Grécia. Antes, conscientemente, tentou implantar a cultura grega. Mais tarde fez o mesmo com a cultura judaico-cristã. Neste contexto, é evidente a conclusão de Rémi Brague: «a experiência do começo como (re)começo é romana» (Europe, la voie romaine). E todos sabemos que as decadências culturais europeias se resolveram com um regresso às origens.
Posto isto, a questão que se coloca é esta: que regresso devemos defender? Sem dúvida, em primeiro lugar dar a conhecer as grandes conquistas culturais que estas duas cidades nos legaram. Seguidamente, indicar as grandes tensões que nunca foram resolvidas e procurar horizontes que possibilitem novas sínteses. Já demos um exemplo na filosofia (cfr. Recensão sobre Xavier Zubiri). Noutros casos, temos de reconhecer que ainda não temos esse novo horizonte: por exemplo, a contraposição da conceptualização da vontade em São Tomás (Aristóteles) e em Duns Escoto (Santo Agostinho) continua por resolver. A filosofia moderna, com Kant à cabeça, nada mais fez do que aprofundar o fosso enveredando unilateralmente por Duns Escoto.
Contudo, na procura destas sínteses, também temos de ter em conta um perigo que se tornou demasiadas vezes efectivo ao longo da história que nos precede: «os sectários de ambas as cidades têm sempre a irresistível pulsão para conquistar e destruir a cidade adversária. Os zelotas que perseguem os homens de ciência; os ideólogos que perseguem os homens de Deus. Torna-se evidente que uma terceira possibilidade emerge a partir da constatação de tamanho conflito. Ela é demasiado tentadora diante dos perigos do combate - é a reconciliação. Neste caso, a reconciliação por síntese ou por sincretismo. Quando as duas partes são tão diferentes, e o sincretismo não parece ser possível sem diluir uma na outra, ou sem sacrificar a essência de uma à outra, o caminho da reconciliação obriga a um preço tão elevado quanto o benefício conjecturado da dissipação do conflito» (Atenas e Jerusalém, Linhas Direitas, Cultura e Política à Direita).
Perante este contexto, nesta nova terra de “transplante” que é o presente, Miguel Morgado aponta uma via não só “política” mas intrínseca e intelectualmente fecunda: «Diante destas alternativas, desponta ainda um horizonte, não de resolução do conflito, mas da sua preservação enriquecedora. Isto é, a preservação da autonomia das duas cidades, o que implica conceder a permanente tensão entre elas e a recusa de ambas de se submeterem uma à outra. A preservação da vitalidade de ambas as cidades aparece como a fonte de vitalidade da civilização que as alberga no seu espaço – neste caso, a nossa. Conservar a vitalidade de Jerusalém e da sua pretensão (a de que a sabedoria que vem de Deus é superior ao conhecimento apreensível pela razão e a obediência ao seu comando é o único caminho de verdade que podemos percorrer), a par da conservação da vitalidade de Atenas e da sua pretensão (a de que o homem só pode conhecer o mundo e orientar-se nele recorrendo à razão sem auxílios externos), e a aceitação da fecunda tensão que entre elas se gera, são o segredo da nossa sobrevivência espiritual no futuro. E este segredo não deve ser perturbado pelas vozes melífluas dos habitantes mais sectários destas duas cidades» (Atenas e Jerusalém, Linhas Direitas, Cultura e Política à Direita).
Ou seja, este horizonte ainda se torna mais promissor já que nos permite ir mais a fundo: não nos contentarmos com as sínteses que nos parecem já suficientemente resolvidas. E esta dialéctica a promover é intrínseca a cada uma das posições: «Como escolher uma ou outra? É mais provável supor que será uma delas a escolher-nos. E se se disser que esta é já a resposta de Jerusalém, então que se ouça o apelo tipicamente ateniense de nos mantermos abertos ao desafio permanente lançado pela outra cidade. Ora, é retomando essa aventura permanente que poderemos redescobrir o tesouro espiritual que fez a Europa». (Atenas e Jerusalém, Linhas Direitas, Cultura e Política à Direita).
Podemos ainda dar mais algum passo? Convém aqui ter em conta um novo posicionamento da historiografia actual. Até há pouco, a análise que se fazia de um determinado período histórico estava muito limitada a saber que possibilidades tinha originado esse período e que possibilidades abriu para o próximo. Ora, esta perspectiva deixava na penumbra possibilidades que se criaram e não tiveram fortuna no período seguinte ou impedia de considerar em si mesmas aquelas que tiveram futuro. (Veja-se a excelente introdução que Chris Wickham faz ao seu livro The Inheritance of Rome: A History of Europe from 400 to 1000). Ou seja, o passado ainda nos pode trazer novidades, mais elementos de tensão.
Só neste horizonte amplo é possível uma verdadeira tradição, só assim é possível um verdadeiro futuro: «Esta é, enfim, a história de duas cidades, com épocas de luzes e épocas de trevas, com primaveras de esperança e invernos de desespero. Mas são ambas cidades fronteiriças da civilização europeia, que espreitam o que está mais além e anunciam o que está para chegar, cada uma da sua própria colina». (Atenas e Jerusalém, Linhas Direitas, Cultura e Política à Direita).