JOSEF PIEPER
Recensão
(Mário Rosa)
Josef Pieper nasceu em 1904 na Alemanha e morreu em 1997. A partir de 1950 foi professor na Faculdade de Filosofia de Münster depois de ter recusado uma cátedra na Faculdade de Teologia. Este dado é importante. Pieper não foi um teólogo. Mesmo quando abordava temas propriamente teológicos sempre o fazia de uma perspectiva marcadamente filosófica. O que significa isto? Que alcance tem?
Frente ao abismo aberto pela filosofia moderna entre o âmbito teológico e o âmbito filosófico, Pieper sempre apelou às origens da própria filosofia. Isto é, a filosofia moderna não consegue efectuar essa cisão sem ao mesmo tempo amputar a constituição da filosofia enquanto tal. Ninguém pode dizer que Platão ou Aristóteles ainda não eram propriamente filósofos.
Para Pieper tanto a teologia como a filosofia não são algo primário. Partem de algo «cuja essência não é um resultado de um esforço humano epistemológico mas que se impõe aos nossos olhos como algo aceite ou que se tem de aceitar com anterioridade a qualquer actividade pensante». Ambas só são possíveis quando se «aceita uma interpretação tradicional e pré-filosófica da realidade» e que, «como diz Platão, procede de uma “fonte divina” (Filebo 16).»
As passagens que tenho citado procedem de um estudo de Pieper sobre o fim do tempo (Über das Ende der Zeit: edição inglesa: The End of Time: a meditation on the philosophy of history; edição espanhola: El Fin del Tiempo: meditación sobre la filosofia de la historia). Não é por acaso. Em poucos temas se manifesta tão claramente que post Christum natum, «já não podemos “deixar de lado” o conceito de começo, nem o de criação do nada (nem sequer este conceito verdadeiramente radical de nada), nem tão pouco o conceito de fim.» Com efeito, se estes conceitos só entraram historicamente na filosofia pela «revelação de Cristo», o que nos garante que já purgámos pela razão filosófica toda a sua origem? A acusação de ingenuidade com que a filosofia moderna julga todo o pensar antigo foi uma pedra atirada ao ar que cada vez mais cai sobre a sua própria cabeça.
Mas Pieper pretende ir mais longe. Não se trata tão só que a própria filosofia tenha sofrido uma amputação. Como «o próprio impulso investigador é o mais especificamente filosófico, procurando as razões e a raiz das coisas, e em virtude do qual se dá o trespasso da fronteira da filosofia, por uma parte, e da “teologia”, “fé” e “revelação”, por outra», «isso quer dizer que um filosofar que insista em manter-se “puramente filosófico”, torna-se infiel a si mesmo e até deixaria de ser filosófico». (Über das Ende der Zeit)
Muito haveria a dizer sobre este tema (veja-se a recensão sobre o livro L’Esprit de la philosophie médiévale, de Gilson, e sobre o filósofo Xavir Zubiri), mas aqui queremos ressaltar outra questão. Tem faltado à teologia o pensamento filosófico. As obras de Pieper tentaram colmatar esta lacuna.
Über den Glauben (edição inglesa: On Faith; edição espanhola: La Fe). Livro absolutamente necessário nos dias de hoje, sobretudo para quem se limita a definir a sua fé como uma «experiência», «um sentimento». Como nos recorda Robert Spaemann numa entrevista, «a fé pressupõe ser, precisamente, uma contrapartida à ausência de uma experiência espiritual» na nossa condição actual. Mas então o que é a fé? A fé pressupõe um fenómeno prévio que se chama crença. E tanto a teologia como a filosofia movem-se já dentro deste âmbito prévio. Talvez agora faça mais sentido toda a introdução que fizemos até aqui.
Über die Liebe (edição inglesa: On Love; edição espanhola: Sobre el Amor). Também aqui assistimos ao mesmo método. Não se pode fazer uma dissertação sobre o Agape sem se perceber o que é o Eros. Muito mais nos últimos tempos em que a «Igreja do amor», tal como a caracterizou Rougemont, isto é, a exaltação do puro amor humano, parece imperar para muitos crentes. Inversamente, é preciso acrescentar que já não se pode filosoficamente falar de amor sem tratar do modo radical em que a revelação cristã definiu o Agape. Esta foi a obra que mais demorou a concluir e, talvez, o seu melhor estudo.
Musse und Kult (edição inglesa: Leisure, the Basis of Culture, com uma introdução de T.S. Eliot; edição espanhola Ocio e Culto). Este livro constitui uma defesa do ócio frente à «tirania do mundo do trabalho». Mostra como até o intelectual passou de ser um contemplativo a um “trabalhador”. E a génese desta transmutação é clara: «A Idade Média distingue a razão como ratio da razão como intellectus. A ratio é a faculdade do pensar discursivo, do procurar e investigar, do abstrair, do precisar e concluir. O intellectus, pelo contrário, é o nome da razão enquanto faculdade do simplex intuitus, da “simples visão”, à qual se oferece o verdadeiro como ao olho a paisagem». Ora, se a objectualidade do objecto do intellectus, na filosofia moderna, fica confinado a algo a priori, portanto, a algo meramente formal, então o exercício da razão é tão só actividade, “trabalho”. Não há espaço para a contemplação mas apenas para a observação, passando esta a ser, como refere Jünger, um “acto agressivo”.
Outra consequência imediata, mas desta vez para o cristianismo, é que a contemplação das verdades da fé passa a ser uma “catalogação de ideias, de verdades abstractas”, um “museu” intelectual. Acabou-se então o poder salvífico da contemplação da verdade.
O pensamento antigo e medieval coincidem no essencial: «é no esforço activo do pensar discursivo onde se encontra o momento propriamente humano do conhecimento; o que distingue o homem é a ratio; o intellectus vai mais além do que corresponde propriamente ao homem.» Por isso os antigos e medievais reconheciam «que é inerente ao homem esse algo “supra-humano”». Assim, a vida contemplativa era para São Tomas non proprie humana sed suprahumana. E para Aristóteles o «homem não pode viver enquanto homem senão unicamente enquanto algo divino mora nele» (Ética a Nicómaco).
Com esta amputação, o que resta? A filosofia deixou de ser um modo de vida. É um trabalho académico. A fé esclarecida passou a ser uma orientação para a acção. E o homem resignou-se apenas a ser homem.
Nota: Veja-se a recensão que apresentamos de mais um livro deste autor em Cultura & Liturgia, II - O Sagrado: Origem da Cultura Ocidental, 6. Grécia e Theoria.