I - ORIGEM DA CULTURA OCIDENTAL
4. O SAGRADO
JULIEN RIES
(Mário Rosa)
Tornou-se um lugar-comum, pelo menos no âmbito filosófico, iniciar qualquer reflexão sobre o sagrado citando a famosa passagem de Heidegger na Carta sobre o Humanismo: «Porventura o elemento mais característico da nossa época seja a sua obturação para a dimensão do sagrado (das Heil). Talvez seja esta a sua única desventura (Unheil).»
Os factores que conduziram a esta dessacralização são múltiplos. Aqui queria abordar um dos motivos mais significativos e, no entanto, o mais lamentável: o abandono do sagrado por uma interpretação unilateral e, o que é mais grave, derivada. Tanto em meios académicos como no pensamento comum, o sagrado é pensado por oposição à categoria do profano e, daí, associado a termos que nos são familiares, totem, tabu.
Para se chegar a este estado de coisas muito contribuiu o seguinte esquema de pensamento: a) pensar que a perspectiva genética é a perspectiva essencial, «só se conhece bem o que se vê nascer»; b) a melhor forma de acesso à religião do homem primitivo é estudar as formas rudimentares de religião em alguns povos actuais.
Basta este contexto para perceber o papel libertador que a fenomenologia veio trazer ao estudo da religião. Trata-se de um método que pretende ir «às coisas mesmas», descrevê-las na sua manifestação e enquanto manifestas, não impondo à partida, tanto quanto possível, nenhum esquema pré-concebido por muito óbvio que seja. Isto também significa que tanto a sociologia como a psicologia não podem ser disciplinas privilegiadas no acesso ao fenómeno do Sagrado: elas já partem ou já inserem o estudo do sagrado numa perspectiva particular: o sagrado enquanto fenómeno sociológico e psicológico. Ora, esta redução, ao tornar-se absoluta, significa apenas uma coisa: estudar a génese do sagrado é estudar o seu aparecimento, já que não é um fenómeno originário, mas derivado.
Não nos iremos deter aqui no segundo pressuposto. Basta a recensão que fizemos de André Leroi-Gourhan e sublinhar como ele impediu tantos científicos de perceberem as pinturas rupestres: «este facto [as constantes dos conjuntos de figurações e signos], contra qualquer expectativa, escapou a três quartos de século de considerações sobre a arte e a religião das cavernas» (cap IV, As Religiões da Pré-História). Não foi por acaso, acrescentamos.
Voltar a pensar o sagrado em si mesmo foi uma árdua conquista que passou pelo trabalho de muitos intelectuais. Na primeira parte do livro Les Chemins du Sacre dans l’Histoire (1981), do investigador e professor de história da religião Julien Ries, encontramos bem definido esse caminho. E no Cap VIII vemos tematizada a perspectiva ampla que permitiu fazer o estudo da segunda parte do livro: Ensaio sobre a Expressão do Sagrado nas Grandes Religiões.
Mas afinal o que é o sagrado? A resposta mais clara de Julien Ries encontra-se noutro livro: «Em toda a hierofania existem três elementos inseparáveis mas distintos. O elemento mais próximo ao ser humano é um objecto visível: um homem, uma árvore, o sol, a lua, os astros, uma pedra, um altar, um tempo, etc.. Tudo isto constitui o ambiente. Há um elemento invisível percebido pelo ser humano: a divindade, o numinoso, o transcendente, uma Realidade, uma Força. […] Mas eis aqui um terceiro elemento: a sacralidade, uma nova dimensão na qual o objecto fica revestido e através da qual se manifesta o sagrado. O sacerdote é um homem, mas está revestido de sacralidade, a participação da força misteriosa» (Símbolo, le constati del sacro).
Quando não se distinguem estes três aspectos, o problema é insolúvel:
«No actual debate sobre a experiência religiosa reina uma grande confusão. Na raiz de semelhante situação encontramos muitas causas: a proliferação do vocabulário religioso, acompanhada frequentemente de falta de precisão; falta de rigor em muitos sectores das ciências religiosas; uma verdadeira inflação no campo da literatura religiosa contemporânea» (Cap VIII O Homem Religioso e o Sagrado, Les Chemins du Sacre dans l’Histoire). O que é mais interessante nesta avaliação, ainda tão actual, é saber que o autor não ficou por um mero diagnóstico. Organizou e dirigiu desde 1989 um Tratado de Antropologia do Sagrado com cerca de 50 especialistas em 6 volumes. A obra foi publicada originalmente em italiano. Existe tradução castelhana.
1. As origens do homo religiosus.
2. O homem indo-europeu e o sagrado.
3. A civilização do mundo mediterrâneo e o sagrado.
4. Religiões e culturas asiáticas, australianas e ameríndias.
5. A experiência religiosa e o Sagrado nas grandes religiões.
6. Crises, rupturas e transformações.
Julien Ries foi nomeado Cardeal pelo Papa Bento XVI e morreu em 2013.