I - ORIGEM DA CULTURA
2- ARTE RUPESTRE

ANDRÉ LEROI-GOURHAN
(Mário Rosa)
André Leroi-Gourhan nasceu em França em 1911. Foi arqueólogo, paleontólogo e antropólogo, desenvolvendo conhecimentos muito profundos em tecnologia e estética. Morreu em 1986. Da sua obra destaco Le geste et la parole (1964-65) e Préhistoire de l’art occidental (1965). Para esta introdução limito-me à recensão do livro Les religions de la Préhistoire (1964), seguindo a tradução portuguesa das Edições 70.
André Leroi-Gourhan é um investigador extremamente rigoroso. E isto comportou, em primeiro lugar, um exame muito crítico sobre as principais conclusões que se tinham feito sobre a religião da pré-história. Neste sentido, o autor adverte-nos logo que os dois primeiros capítulos serão “decepcionantes”, ou seja, nada mais fazem do que destruir quase tudo o que se tinha dito no âmbito científico sobre o tema e que fazia parte de qualquer manual escolar. O seguinte parágrafo dá-nos a imagem do que ainda representa para nós, infelizmente, a religiosidade do homem pré-histórico:
«Já há cinquenta anos era estranho que se tivesse partido da ideia de que a religião pré-histórica, sendo rudimentar, devia ser constituída por tudo aquilo que se considera como o mais inferior na religiosidade actual: práticas de feitiçaria, caçadas imitadas, danças de iniciação, cenas de acasalamento, toda uma profusão de práticas apanhadas ao acaso nas narrativas de viajantes dos antípodas, ofensivas para os próprios Pigmeus ou Fueginos, por terem sido tendenciosamente escolhidas na ignorância do cimento que as torna solidárias de uma certa imagem do mundo. Por que motivo havemos de negar que o homem do Paleolítico superior praticou tudo o que se quiser de rituais mágicos, se não existem provas para afirmá-lo ou negá-lo?»
Cingir-se às provas é o segundo aspecto do rigor do seu método. Com efeito, neste campo, é muito tentador sonhar com teorias fantasiosas, algumas delas, completamente ridículas. Aqui e ali, André Leroi- Gourhan vai dando exemplos deste tipo de divagações nos quais revela também o seu bom humor.
De todo o livro destaco uma metáfora e uma comparação. A metáfora escolhida ajuda-nos a nunca ceder a interpretações fantasiosas, àquilo que o autor chama de “folclore científico”: é a metáfora do teatro. Ela está presente no início do III capítulo e volta a reaparecer no último: «Do Paleolítico somente a decoração chegou até nós, sendo raríssimos os vestígios dos actos e a maior parte incompreensíveis. Para estudar possuímos apenas um palco vazio e é como se nos pedissem para reconstruir a peça sem a termos visto, a partir de telas pintadas em que estivessem representados um palácio, um lago e uma floresta ao fundo.»
Quanto à comparação, ela explica e caracteriza o próprio método que Leroi-Gourhan seguiu. Mais do que devedor desta ou daquela escola, foram as próprias condições do objecto em estudo que impuseram o método.
A primeira parte da comparação insiste no que já tinha revelado a metáfora do teatro:
«O nosso exemplo familiar do viajante sideral servir-nos-á uma vez mais: se ele assistisse ao desenrolar de uma missa sem nada conhecer do cristianismo, levaria para o seu planeta uma narrativa que com certeza não faria a edificação dos intelectuais do lugar; repararia que os cristãos se entregam a sequências de gestos muito singulares, curiosamente estereotipados, sem significação aparente, para terminarem numa operação de magia imitativa, provavelmente destinada a assegurar o crescimento do trigo, ao comerem o simulacro de um pão. […] Mas vamos mais longe. Imaginemos que o nosso ser sideral examinando uma igreja e constatando que existem várias mesas semelhantes em diferentes locais, objectos representando um homem ferido numa cruz, e o mesmo homem representado numa série de quadros ao longo das paredes, em diferentes atitudes com diferentes personagens. Que ligação estabeleceria entre a refeição simulada e o homem torturado?»
Logo a seguir Leroi-Gourhan indica-nos, nestas condições, a única possibilidade de se chegar a algum lado:
«Suponhamos que [este viajante sideral] é paciente: examinaria vinte, cem igrejas, e acabaria por se aperceber de que os testemunhos materiais correspondem a um sistema coerente, que os edifícios têm uma orientação, que as suas partes são constantes, que as cruzes e os quadros correspondem a um tema bem determinado. Jamais conseguiria reconstruir o pensamento cristão e o Evangelho, mas chegaria a afirmar que existe qualquer coisa de simbolicamente elevado por detrás dos documentos incompreensíveis.»
Ora, o trabalho de Leroi-Gourhan “reduziu-se” a isto: visitar «vinte», «cem» cavernas, e registar constantes tanto das figuras, como dos signos, como das suas distribuições. Simplificando ao máximo, o autor constatou que os signos ajudavam a identificar o género das figuras (cavalo- masculino/ bisonte-feminino ) e concluiu que existe “qualquer coisa de simbolicamente elevado”: «um dualismo, qualquer que seja o sentido que lhe esteja subjacente». Para complexificar esta descoberta reparou que ainda havia um «terceiro animal»: «com efeito, a parelha fundamental é normalmente complicada com a presença de um animal do grupo C, que é normalmente um cabrito-montês ou um mamute e por vezes o veado ou a corça. Este animal é representado à margem, ou, na maioria dos casos, mais pequeno». E mais à frente acrescenta: «Escapa-nos o elo dinâmico entre os três protagonistas; a mesma fórmula (A – B + C) repetida várias centenas de vezes atesta unicamente a existência de um sistema de representação estruturado de forma muito sólida.»
Só esta interpretação faz jus à beleza e grandiosidade das pinturas rupestres. E não podemos terminar esta recensão sem destacar o paradoxo aqui presente: quanto mais sóbria e respeitadora dos dados arqueológicos for uma teoria, com maior esplendor aparece o homem pré-histórico aos nossos olhos.
Nota: as seguintes imagens são da Gruta de Chauvet, França.




