INTRODUÇÃO À METAFÍSICA
O Princípio da Realidade ou a Realidade de um Princípio
(Mário Rosa)
Nada existe de mais ingénuo do que falar de realidade em filosofia. E se alguém, após toda a longa história da modernidade, se atreve a recolocar a questão ela só poderá soar a provocação gratuita.
Falar de realidade é falar de metafísica. E “metafísica” passou a significar o que “originariamente” significou o termo: uma mera catalogação dos livros de Aristóteles: aqueles livros que estão para “além da física”. No fundo, algo pertencente ao reino das núvens, como já tinha criticado Aristófanes.
Falar de realidade é pôr em questão o princípio de omnibus dubitandum est (é preciso duvidar de tudo). E esse é precisamente o princípio – paradoxalmente! – que não se aceita questionar. E pouco vale apelar à questão de se tratar de uma meta-afirmação. Se tudo é uma ilusão então essa ilusão é o que se chamaria realidade.
A recolocação da realidade como tema filosófico conheceu vias diversas. Tentar encontrar uma inferência causal no conhecimento que lançasse uma ponte à realidade foi a via do realismo crítico. Escusado será dizer que foi uma via morta: o conhecimento previamente despojado da realidade nunca a poderá novamente alcançar.
Outra via, muito mais consistente, foi tentar invalidar internamente o princípio moderno do cogito ergo sum. A regressão ao infinito que exige tal princípio foi o que levou Husserl a falar de intenções nulas. Não o conseguiu salvar. E a crítica à consciência gnosiológica como princípio feita por Heidegger representou o golpe de misericórdia. Contudo, nada disto constitui por si um regresso à realidade.
Menos consistente mas muito mais provocatória foi a via existencial. Em 1872 é publicado um pequeno livro de Kierkegaard. Johannes Climacus eller De Omnibus Dubitandum Est. É o relato de um estudante de filosofia que tenta existencialmente incorporar o princípio da filosofia moderna. Escusado será dizer que desmaia nessa tentativa. Existência e pensamento – pensamento tal como é entendido na modernidade – são incompatíveis. Todo o filósofo moderno, nisso Kierkegaard tem razão, foi e continuará a ser um esquizofrénico. Mas isso não abriu por si a porta à realidade. Além do mais, o filósofo moderno é um académico. Levou a filosofia à escola e não a deixou sair de lá.
Muito desenvolvida nos países anglo-saxónicos foi a via do common sense. Aproveitando-se da impossibilidade de se encontrar uma verdade absoluta, mesmo sendo o cogito, tudo fica no âmbito da razoabilidade e exige, portanto, um acto de decisão. Há uma opção no princípio de toda a filosofia.
Em nenhuma destas tentativas se considerou o fenómeno originário em que a realidade se dá. E não é um fenómeno qualquer. Husserl tem de o designar como Ur-doxa, Proto-crença. Porquê? Porque se bem ele não encontra aqui uma evidência “lógica”, percebe que a força com que se impõe nada tem a ver com qualquer outra crença. E esta é a brecha por onde tem de se entrar. Husserl, e com ele toda a filosofia moderna, até pode ter razão quando considera não haver neste fenómeno uma evidência “lógica”. Mas o passo que é dado em seguida não está intrínseca e positivamente dado: o de ser uma crença.
Nunca, mesmo depois de concluir, por vários raciocínios, que é uma crença, alguém conseguirá ver no modo mesmo como a realidade se apresenta uma crença. Nunca, mesmo depois de alguém assim estar convencido, terá espaço para que a sua vontade faça uma opção. A filosofia chega sempre demasiado tarde. A epokhé husserliana não é simplesmente um método. É o único método possível para neutralizar um dado impossível de contornar.
Enquanto este fenómeno originário está aí, nenhuma construção filosófica, por mais evidente que seja, se pode impor. Ela simplesmente muda de terreno. A filosofia sempre gostou de ter uma criada. E até a deixa rir, tal é a altivez em que sempre se encontrou. Mas a verdade é que a criada tem muito de razão.
Mas este dado originário com que a realidade se apresenta não é só um dado. É um dado fundante de todo o pensar. Pensar é sempre pensar em possibilidades. Pensar é sempre pensar no que uma coisa será. Pensar se uma coisa é assim mesmo tal como a vejo, mesmo para dizer que é diferente, exige, de algum modo, não sair dela.
Por onde quer que se pegue, a realidade está sempre demasiado perto. Tão perto que o absurdo dos absurdos é tentar sair dela.
Apesar de tudo, a questão impõe-se: como deve a filosofia enfrentar e analisar devidamente este dado originário? No estado actual da questão a filosofia de Xavier Zubiri tornou-se incontornável.
Serve esta introdução para demarcar em que sentido se farão as recensões sobre os filósofos: enquanto constituem passos importantes para se recolocar e pensar a realidade. Só assim se poderá refazer a unidade na tradição filosófica.